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Quem chega à beira do rio Vermelho, na Cidade de Goiás, logo vê a singela, mas imponente, Casa Velha da Ponte e, numa das janelas antigas parece estar, debruçada, a dona Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, ou melhor, a poetisa Cora Coralina. Hoje, a casa é um museu, que tem o nome da artista, e guarda os móveis e apetrechos que eram dela, tudo arrumadinho do jeito que ela gostava. E isso tudo encanta qualquer visitante.
A cidade se chamava Vila Boa e era a capital do Estado desde quando nasceu, em 1.726, criada pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva Filho, o Anhanguera II. E assim foi até 1.933, quando surgiu Goiânia, por imposição do médico Pedro Ludovico Teixeira. Ele participou da Revolução de 30, com Getúlio Vargas, mas disse que só aceitaria ser governador se a capital não fosse “na terra dos Caiados”.
É que ele, por certo, ainda não conhecia Cora, porque a cidade se parece muito mais com ela do que com os ruralistas. Os becos, os sobrados, todas aquelas construções coloniais, enfim, e os gestos daquela gente lembram mais os versos de Cora Coralina do que o ribombar da fuzilaria de jagunços dos coronéis que tomavam conta da antiga capital.
A Aninha, apelido da poetisa até idade bem avançada, nasceu ali mesmo, naquele casarão de muitas janelas, construído nos primeiros anos da cidade, em 1.889, em Vila Boa. Seu pai era desembargador na província de Goiás, nomeado por D. Pedro II, portanto era parte das elites locais, era bem de vida. Mas não ajudava a filha em seus voos literários.
Os primeiros poemas, ela escreveu aos 14 anos, e foram publicados no jornal “A Rosa”, criado em 1.907, que ela e mais três amigas editavam. Mas há registros de escritos publicados antes disso, como é o caso da crônica “A Tua Volta”, que foi publicado em 1.906, no jornal “Folha d Sul”, da cidade goiana de Bela Vista, que ela dedicou “ao Luiz do Couto, o querido poeta gentil das mulheres goianas”.
No entanto, os primeiros anos de sua vida foram repletos de dificuldades, a começar pelo pouco estudo que conseguiu ter – quatro anos do ensino básico, com uma professora. Mas, recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás (UFG), em 1983. E, logo depois, no mesmo ano, foi eleita intelectual do ano e contemplada com o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores.
Foi casada com o advogado Francisco Tolentino de Figueiredo Bretas, que foi secretário de segurança do estado de São Paulo, mas trabalhou também em cidades do interior, como Jaboticabal, onde viveram muitos anos e ela teve seus seis filhos. Com a morte do marido, ela voltou pra Goiás, indo morar em Pirenópolis, outra cidade histórica, onde passou a fazer e vender linguiças caseiras de suíno e banha de porco.
Era uma mulher muito simples, doceira de profissão, passou a maior parte dos 95 anos que viveu longe de grandes centros urbanos. Talvez por isso mesmo tenha uma obra muito sua, distante de modismos. Sua poética é rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, como um longo poema sobre o milho ou os ricos detalhes dos becos e das ruas históricas da Cidade de Goiás, o atual nome de Vila Boa.
Ao completar 50 anos de idade, ela conta que promoveu uma verdadeira revolução interior, cujo foco principal era a perda de medos que ela tinha. Foi nessa fase que ela resolveu abandonar seu nome de batismo, o apelido de Aninha e adotou o pseudônimo de Cora Coralna.
O fato é que seus poemas e outros escritos foram sendo publicados de modo pingado, em publicações regionais. Seu primeiro çivro (“Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”) foi publicado só em junho de 1.965, quando ela já tinha 75 anos de idade. Com divulgação acanhada, difícil, a obra foi ganhando espaço por ela mesma, porque muita gente que lia aqueles poemas recomendava a leitura a amigos ou em publicações culturais.
Em 1.978, esse mesmo livro foi editado novamente, de novo com dificuldades na difusão e divulgação, mas chegou às mãos de Carlos Drummond de Andrade. Ele tinha uma coluna no Jornal do Brasil, muito lida, onde ele escreveu uma resenha desbragadamente elogiosa ao livro e, por fim, arrematou:
"Não estou fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi publicada pela Universidade Federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles."
Uns anos depois, quando foi publicado “Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha”, Drummond de Andrade lhe escreveu uma carta pessoal, em que decretou:
"Minha querida amiga Cora Coralina: Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia ( ) ”
Em verdade, no seu linguajar simples, Cora sempre impôs firmeza e erudição, o que parece incrível, mas fica evidente nas construções dos versos e, em especial, no vocabulário bem distribuído e muito forte. Pra falar de Cora Coralina, todavia, é preciso exemplificar, ou melhor, mostrar o que ela escrevia. Por isso, aí vão dois poemas dos mais amados que ela nos deixou:
Becos da minha terra... Amo tua paisagem triste, ausente e suja. Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa. Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio. E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia, e semeias polmes dourados no teu lixo pobre, calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo.Amo a prantina silenciosa do teu fio de água, Descendo de quintais escusos sem pressa, e se sumindo depressa na brecha de um velho cano. Amo a avenca delicada que renasce Na frincha de teus muros empenados, e a plantinha desvalida de caule mole que se defende, viceja e floresce no agasalho de tua sombra úmida e calada
Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai de santo...Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d'água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de são-caetano.Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute benfeito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal.Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.Vive dentro de mim a mulher roceira. - Enxerto da terra, meio casmurra. Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos Seus vinte netos.Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... Fingindo alegre seu triste fado.Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida - a vida mera das obscuras.
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